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sexta-feira, 19 de junho de 2015

O BURRO DE CARGA

                                                                 

No tempo em que não havia automóveis, na cocheira de famoso palácio real um burro de carga curtia imensa amargura, em vista das pilhérias e remoques dos companheiros de apartamento.
       Reparando-lhe o pelo maltratado, as fundas cicatrizes do lombo e a cabeça tristonha e humilde, aproximou-se formoso cavalo árabe, que se fizera detentor de muitos prêmios, e disse, orgulhoso:


- Triste sina a que recebeste! Não Invejas minha posição nas corridas? Sou acariciado por mãos de princesas e elogiado pela palavra dos reis!

- Pudera! - exclamou um potro de fina origem inglesa - como conseguirá um burro entender o brilho das apostas e o gosto da caça?

     O infortunado animal recebia os sarcasmos, resignadamente.


     Outro soberbo cavalo, de procedência húngara, entrou no assunto e comentou:

- Há dez anos, quando me ausentei de pastagem vizinha, vi este miserável sofrendo rudemente nas mãos de bruto amansador. 
É tão covarde que não chegava a reagir, nem mesmo com um coice. 
Não nasceu senão para carga e pancadas. É vergonhoso suportar-lhe a companhia.

   Nisto, admirável jumento espanhol acercou-se do grupo, e acentuou sem piedade:

- Lastimo reconhecer neste burro um parente próximo. 
É animal desonrado, fraco, inútil... Não sabe viver senão sob pesadas disciplinas. 
Ignora o aprumo da dignidade pessoal e desconhece o amor-próprio. 
Aceito os deveres que me competem até o justo limite; mas, se me constrangem a ultrapassar as obrigações, recuso-me à obediência, pinoteio e sou capaz de matar.


   As observações insultuosas não haviam terminado, quando o rei penetrou o recinto, em companhia do chefe das cavalariças.

- Preciso de um animal para serviço de grande responsabilidade - informou o monarca, -animal dócil e educado, que mereça absoluta confiança.

            O empregado perguntou:

     Não prefere o árabe, Majestade?

- Não, não - falou o soberano -, é muito altivo e só serve para corridas em festejos oficiais sem maior importância.

- Não quer o potro inglês?

- De modo algum. E’ muito irrequieto e não vai além das extravagâncias da caça.

- Não deseja o húngaro?

- Não, não. É bravio, sem qualquer educação. É apenas um pastor de rebanho.

- O jumento serviria? - insistiu o servidor atencioso.

- De maneira nenhuma. É manhoso e não merece confiança.

   Decorridos alguns instantes de silêncio, o soberano indagou:

- Onde está o meu burro de carga?


   O chefe das cocheiras indicou-o, entre os demais.


   O próprio rei puxou-o carinhosamente para fora, mandou ajaezá-lo com as armas resplandecentes de sua Casa e confiou-lhe o filho, ainda criança, para longa viagem.


  Assim também acontece na vida. Em todas as ocasiões, temos sempre grande número de amigos, de conhecidos e companheiros, mas somente nos prestam serviços de utilidade real aqueles que já aprenderam a suportar, servir e sofrer, sem cogitar de si mesmos.


*Xavier, Francisco Cândido. Da obra: Idéias e Ilustrações.
Ditado pelo Espírito Neio Lúcio.

                                                    




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