A teoria do demônio é um argumento cômodo que se presta ás explorações.
"Mas os fariseus diziam: Ele expulsa os demônios pelo príncipe dos demônios." - Mt., 9:34
Nem mesmo o próprio Cristo escapou da desconfiança de ter parte com o demônio.
Por isso, não admira que - ainda hoje - a ignorância e subalternos interesses venham, também, lançar suspeitas da existência de tal aliança entre Belzebu e os Espiritistas, de vez que o Espiritismo vem revivescer, em Espírito e Verdade, a primitiva pureza do Cristianismo...
Na verdade, o demônio vem sendo o aliado dos teólogos que, descuidados, não perceberam que se utilizavam de uma faca de dois gumes: inicialmente, acenando com tais entidades das trevas, pensavam apenas intimidar quantos pretendiam arrombar as duras paredes dogmáticas e descortinar novos horizontes nos campos metafísicos.
Não sabiam que deviam pagar o preço exigido pelo aliado...
Para melhor compreensão dessas questões, acompanhemos o raciocínio lógico e contundente de Léon Denis[1]:
"(...) Se o Espírito maligno - como pretendem os teólogos - tem a facilidade de reproduzir todas as formas, todas as figuras, revelar coisas ocultas, proferir as mais sublimes alocuções; se nos ensina o bem, a caridade, o amor, pode-se igualmente atribuir-lhe as aparições mencionadas nos livros santos, acreditar que foi ele quem falou a Moisés, aos outros profetas e ao próprio Cristo, e que toda ação espiritual oculta é obra sua.
O diabo, tudo sabendo e podendo, até mesmo fazer sábio e virtuoso o Espírito, pode muito bem ter assumido o papel de guia religioso e, sob o pálio da Igreja, nos conduzir à perdição.
A História, com efeito, nos demonstra com irrefragável lógica que nem sempre a Igreja foi inspirada por Deus. Em muitas circunstâncias, os seus atos têm estado em absoluta contradição com os atributos de que nos apraz revestir a Divindade.
A Igreja é uma árvore colossal, cujos frutos nem sempre foram os melhores, e o diabo - pois que é tão hábil - pode muito bem ter-se abrigado à sua sombra!...
Se devemos admitir, com os teólogos, que em todos os tempos e lugares tenha Deus permitido as mais odiosas fraudes, o mundo se nos apresentará como imensa impostura, e nenhuma segurança teremos de não sermos enganados, tanto pela Igreja quanto pelo Espiritismo...
É assim que o argumento do demônio, como arma de dois gumes, se pode voltar contra aqueles que o forjaram. Cabe, entanto, perguntar se de fato haveria tamanha habilidade da parte do diabo em proceder como os nossos contraditores o pretendem.
Nas sessões espíritas, vê-lo-íamos convencer da sobrevivência da alma e da responsabilidade dos atos a indivíduos materialistas; libertar da dúvida os cépticos, e da negação e de todas as suas consequências, dizer às vezes duras verdades a pessoas desregradas e obrigá-las a cair em si e orientar-se no sentido do bem.
Onde estaria, pois, em tudo isso, a vantagem para Satanás? Não deveria, ao contrário, o papel do Espírito das trevas consistir em acoroçoar em suas tendências os materialistas, os ateus, os cépticos e os indivíduos sensuais?
É verdadeiramente pueril atribuir ao demônio o ensino moral que nos prodigalizam os Espíritos elevados.
Se o diabo é hábil, podem imputar-lhe as respostas ingênuas, grosseiras, ininteligentes, obtidas nos círculos onde se experimenta sem critério? E as manifestações obscenas?
Não são antes próprias a nos afastar do Espiritismo do que nos atrair para ele?
Ao passo que, admitindo a intervenção de Espíritos de todas as ordens, desde a mais baixa à mais elevada, tudo se explica racionalmente.
Os Espíritos malfazejos não são de natureza diabólica, mas de natureza simplesmente humana.
Não há na Terra, encarnadas entre nós, almas perversas, que se poderiam considerar demônios? Voltando ao Espaço, essas almas continuam a proceder do mesmo modo, até que venham a ser regeneradas pelas provações, subjugadas pelos sofrimentos.
Aos investigadores prudentes compete pôr-se em guarda contra esses entes funestos e reagir contra sua influência.
(...) A teoria do demônio, em resumo, nem é positiva nem científica.
É um argumento cômodo, que se presta às explorações; permite rejeitar provas, todos os casos de identidade e fazer tábua rasa dos mais autorizados testemunhos; pouco concludente, porém, e absolutamente em contradição com a natureza dos fatos.
A crença no demônio e no inferno tem sido combatida com argumentos de tal modo peremptórios que causa admiração ver inteligências esclarecidas ainda hoje a adotarem.
Como se não compreende que, opondo incessantemente Satanás a Deus, atribuindo-se-lhe sobre o mundo e sobre as almas um poder que, dia a dia, aumenta, diminui-se paralelamente o império de Deus, amesquinha-se o Seu poder, aniquila-se a Sua autoridade, põe-se em dúvida a sabedoria, a bondade, a previdência do Criador?
(...) O que se chama demônios, são simplesmente Espíritos inferiores, ainda propensos ao mal, submetidos, porém, como todas as almas à lei do progresso.
Não há diversas categorias de almas, destinadas umas à felicidade e outras à desgraça eterna. Todas se elevam pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento.
A unidade perfeita e a harmonia reinam no Universo.
Cessemos, pois, de profanar a ideia de Deus com essas concepções indignas da grandeza e da bondade infinitas; saibamos despojá-la das desgraçadas paixões humanas que se Lhe atribuem.
Com isso a Religião ganhará prestígio.
Pondo-a em harmonia com os progressos do espírito humano, dar-se-lhe-á maior vitalidade.
(...) Já não acreditamos num Deus colérico e vingativo, mas em um Deus de justiça e de infinita misericórdia. O Jeová sanguinário e terrível fez sua época...
O inferno implacável fechou-se para sempre.
Do Céu à Terra desce, agora, com a Nova Revelação, o lenitivo para todas as dores, o perdão para todas as fraquezas, o resgate para todos os crimes, mediante o arrependimento e a expiação e a reparação”.
[1] - DENIS, Léon. No Invisível. 19. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2000, cap. 23 (Hipóteses e Objeções).
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